domingo, 1 de novembro de 2009

por que ensinamos

O sítio não tem nada de especial.
Há uma estrada pouco frequentada que se afasta do IC2.
À nossa direita, um conjunto habitacional com uma espécie de apartamentos. Tudo meio decrépito e a precisar urgentemente de uma pintura.

Mas uma vez lá chegados, a prisão de Vale de Judeus parece querer intimidar quem se aproxima. Não sei se serão os muros de betão de dez ou doze metros de altura, se as torres de vigia, se a vedação altíssima, tudo encimado por arame farpado com um ar feroz como nunca antes vira… mas quem lá chega pela primeira vez engole em seco.

Depois é a aproximação ao portão principal. Algures uma – ou mais! – câmara de vigilância já nos observa. Toca-se à campainha, a porta de aço gira nos seus gonzos e entramos.
E ela fecha-se logo depois.
E volta-se a engolir em seco quando com um baque surdo se tranca nas nossas costas.

Depois há a revista, os detectores de metais, os portões, os gradões, o esperar que algum guarda chegue lá da outra ponta do estabelecimento para nos dar passagem.
O que realmente se estranha no interior é o muito betão que está à vista, o ar asséptico dos corredores e o curioso facto de, por onde quer que se ande, por onde quer que se passe, sentirmos a falta da luz natural.
Não sei se terá sido projectado propositadamente assim, se será obra do acaso, ou se serão os nossos próprios sentidos que nos iludem, mas o sol não toca a alma de quem se move nos pavilhões do Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus.

E é nesse momento que sentimos que não é ali que queremos estar. Que não foi para aquilo que concorremos. Que não devíamos ser obrigados a ir para ali, fazer o nosso trabalho, naquele sítio, com aquelas pessoas. Que tivemos um azar do…! Pois.

Mas fazemos das tripas coração e o trabalho começa.
E um dia entramos na sala de aula e “eles” começam a chegar.
Eles... Traficantes.
Violadores.
Pedófilos.
Assassinos.
Ladrões na melhor das hipóteses.
You name it. La créme-de-la-créme.

Durante um momento, enquanto eles vão chegando, o silêncio pesa.

E depois começamos.
E apresento-me. E eles apresentam-se, um a um.
Uns mais acanhados, outros com mais desembaraço, todos, sem excepção, educados e polidos, respeitando o professor ou professora que ali está diante deles duma forma a que, infelizmente, muitos de nós já se desabituaram nas nossas escolas ditas “normais” com os alunos ditos “normais”.

E de repente esquecemo-nos de onde estamos e diante de quem estamos.
E nem é preciso fazer qualquer esforço por isso.
Fazemos o nosso trabalho e eles fazem (ou tentam fazer) o seu conforme podem.
Muitos só pegaram numa caneta nos últimos vinte anos para assinar o nome. São os que põem a língua de lado enquanto copiam do quadro, como as crianças aplicadas.

E pronto.
Ali dentro da sala de aula já não são nem ladrões, nem assassinos, nem violadores.
Ou serão ainda, mas tal nem passa pelo nosso pensamento.
E de súbito dou por mim não só a emprestar a um deles um x-acto, como depois me esqueço disso e me vou embora no final da aula com toda a naturalidade do mundo!!

Durante noventa minutos, dentro daquela sala, há um momento de redenção.
Se algo é feito neste país pela reintegração e regeneração daqueles indivíduos é naquelas salas de aula.
Há olvido enquanto se ensina e aprende.

Será verdadeiramente essa a magia do ensino?

3 comentários:

  1. Belo texto Pedro, não só pelo que diz mas, sobretudo, pela forma como o diz. É tocante e exprime, na minha opinião, algo que é parte da própria essência de ser professor.

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  2. Pedro,
    Não consigo ficar indiferente ao teu post "Porque ensinamos", que acho absolutamente espectacular. Ao lê-lo senti uma panóplia de emoções. Desde a consciência do perigo, à tristeza, passando pelo respeito e especialmente a Saudade. Toda a descrição do espaço, do que se sente, do que somos lá dentro, do nosso trabalho... não poderia estar mais verdadeira. Parabéns. Fico muito contente por eles terem ganho um Professor, com letra grande, que tem a coragem, a humildade e a humanidade de perceber o que é ser, estar e leccionar num Estabelecimento Prisional. Sim Pedro, é essa a verdadeira magia do ensino.

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  3. Boa Pedro, excelente texto.
    E eu cheia de remorsos por ter "mandado" o Pedro para a prisão. Sim há quem pense que eu tenho poderes para isso e muito mais...
    Como diz a Esperança, só quem tenha leccionado num estabelecimento prisional consegue realmente sentir o teu texto.É uma experiência única, mas psicológicamente desgastante.
    Só agora comentei o teu post porque não conseguia passar esta prova. Felizmente o formador lá conseguiu orientar-me.
    Até uma precária.. ah,ah

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